quarta-feira, 20 de agosto de 2008

LEIA E REFLITA

A MÃO SUJA

Carlos Drummond de Andrade, Antologia Poética



Minha mão está suja.


Preciso cortá-la.


Não adianta lavar.


A água está podre.


Nem ensaboar.


O sabão é ruim.


A mão está suja,


suja há muitos anos.




A princípio oculta


no bolso da calça,


quem o saberia?


Gente me chamava


na ponta do gesto.


Eu seguia, duro.


A mão escondida


no corpo espalhava


seu escuro rastro.


E vi que era igual


usá-la ou guardá-la.


O nojo era um só.



Ai, quantas noites


no fundo da casa


lavei essa mão,


poli-a, escovei-a.


Cristal ou diamante,


por maior contraste,


quisera torná-la,


ou mesmo, por fim,


uma simples mão branca,


mão limpa de homem,


que se pode pegar


e levar à boca


ou prender à nossa


num desses momentos


em que dois se confessam


sem dizer palavra...


A mão incurável


abre dedos sujos.




E era um sujo vil,


não sujo de terra,


sujo de carvão,


casca de ferida,


suor na camisa


de quem trabalhou.


Era um triste sujo


feito de doença


e de mortal desgosto


na pele enfarada.


Não era sujo preto


- o preto tão puro


numa coisa branca.


Era sujo pardo,


pardo, tardo, cardo.



Inútil reter


a ignóbil mão suja


posta sobre a mesa.


Depressa, cortá-la,


fazê-la em pedaços


e jogá-la no mar!


Com o tempo, a esperança


e seus maquinismos,


outra mão virá


pura - transparente -


colar-se a meu braço.

Nenhum comentário: